Confira no Portal CNTT artigo do professor e autor Venício Lima.
Publicação: 01/07/2010
A Seleção Brasileira de Futebol constitui um
patrimônio cultural do país que não pode ser apropriado por
interesses privados. No entanto, o futebol brasileiro – não só a
Seleção – tem sido explorado comercialmente pela Globo como se sua
propriedade fosse. O Portal CNTT
divulga artigo do professor Venício Lima sobre o assunto. Leia a
seguir:
Embora tenha apoiado o golpe de 64, o regime militar e se
consolidado como a mais poderosa rede de televisão do país durante
a ditadura, houve períodos em que a percepção de boa parte da elite
fardada era de que a Rede Globo de Televisão representava uma
ameaça real de controle da opinião pública brasileira e precisava
ser enfrentada.
No governo do General Geisel (1974-1979), sendo ministro das
Comunicações o Coronel Euclides Quandt de Oliveira, foi certamente
quando surgiram as maiores contradições e divergências entre o
regime autoritário e a Globo. Documentos da época e sua análise
estão disponíveis, por exemplo, no livro “Dossiê Geisel”,
organizado por Celso Castro e Maria Celina D’Araújo e publicado
pela FGV em 2002.
Encontro na UnB Faço esta rápida introdução para relatar um
encontro emblemático acontecido há 35 anos, entre professores do
então Departamento de Comunicação da Universidade de Brasília e
altos dirigentes globais, entre eles, Walter Clark (diretor geral),
Luiz Eduardo Borgerth (diretor), Otto Lara Resende (assessor da
presidência), infelizmente, já falecidos.
O contexto do encontro trazia, no mínimo, preocupações para as
Organizações Globo:
(1) A Globo havia perdido a disputa por um canal de TV aberta em
João Pessoa, PB, por interferência direta do ministro Quandt que
considerava um risco “aumentar o monopólio da emissora”.
(2) O ministro vinha fazendo uma série de críticas públicas à
televisão brasileira, todas de grande repercussão. Uma delas, a
aula inaugural no curso de comunicação do CEUB, Centro de Ensino
Unificado de Brasília, sobre “A televisão no Brasil” (17/2/1975).
Na sua fala ele destacava os “perigos do monopólio” tanto de
canais, quanto de audiência, quanto na programação
“alienígena”.
(3) Estava em andamento a criação da Radiobras [Lei n. 6301 de
15/12/1975] que era vista com desconfiança pela Globo pelo temor de
que se transformasse em destinação preferencial de verbas
publicitárias do governo.
(4) Estava em discussão, dentro do governo, um pré-projeto de
regulação da radiodifusão que deveria substituir o superado Código
Brasileiro de Telecomunicações [Lei 4. 117/1962].
(5) O Departamento de Comunicação da UnB era uma unidade acadêmica
que produzia pesquisa crítica sobre a radiodifusão brasileira e
acabara de elaborar um pioneiro projeto de unificação das
televisões públicas que recebeu o nome de SINTIS, Sistema Nacional
de Televisão de Interesse Social. Além disso, circulava que alguns
de seus professores tinham acesso ao ministro das Comunicações e o
abasteciam com dados nos quais ele fundamentava sua posição, direta
e/ou indiretamente, contrária à hegemonia da Globo.
O objetivo do encontro, realizado por iniciativa da Globo, na UnB,
era “trocar idéias” sobre as comunicações no Brasil. O que acabou
acontecendo, todavia, foi quase um bate-boca. Apesar da conjuntura
politicamente adversa – para a Globo – em que se realizava o
encontro, a memória de professores presentes é unânime em afirmar a
arrogância de seus dirigentes. Não houve diálogo possível e cada um
saiu do encontro ainda mais convicto em relação às respectivas
posições. Divergimos em relação à existência de um virtual
monopólio na TV brasileira; às finalidades educativas da televisão
(previstas em lei); à prioridade ao conteúdo nacional e à
necessidade de criação de uma rede pública de radiodifusão.
No presente como no passado Relembro este
encontro e a memória que dele ficou para reforçar os inúmeros
comentários já escritos e publicados nesta Carta Maior sobre o
enfretamento que a Globo faz a Dunga, aparentemente, por ele não
ser conivente com os privilégios da emissora em relação aos demais
veículos de mídia que estão cobrindo a Copa do Mundo na África do
Sul. Ao longo de sua existência, uma característica da Rede Globo
tem sido ignorar que a televisão é apenas a concessão de um serviço
público que tem como soberano o cidadão e seu interesse. Ao
contrário, a Globo tem historicamente se comportado como
proprietária das concessões de radiodifusão. A própria
Seleção Brasileira de Futebol constitui um patrimônio cultural do
país que não pode ser apropriado por interesses privados. No
entanto, o futebol brasileiro – não só a Seleção – tem sido
explorado comercialmente pela Globo como se sua propriedade
fosse.
A Globo, por óbvio, não tem mais em 2010 o poder que teve na década
de 70 do século passado, enfrentado, por razões próprias, pelo
regime militar. Mas conserva a arrogância. Por outro lado, uma
diferença do passado para o presente é que o inconformismo em
relação à Globo não está mais restrito a alguns professores
isolados em departamentos universitários. Repetindo a resistência
que se expressou em outras situações históricas no lema popular “o
povo não é bobo, abaixo a rede Globo”, a internet fornece hoje o
suporte tecnológico necessário para que milhões de pessoas se
mobilizem em torno de iniciativas como “cala a boca Galvão” e “cala
a boca Tadeu”. Além disso, dezenas de blogs e sites alternativos
tornaram pública a opinião daqueles que fazem contraponto à TV
hegemônica.
Outro mundo possível Resta manter a esperança
de que – um dia – a transmissão de jogos dos campeonatos locais,
regionais e nacional de futebol e a cobertura dos jogos da Seleção
Brasileira, não serão exclusividade de concessionárias comerciais,
mas estejam disponíveis nas redes públicas de televisão. Em se
tratando de um patrimônio cultural brasileiro, as redes comerciais
privadas não deveriam remunerar as redes públicas para distribuir e
comercializar este tipo de conteúdo?
O episódio Globo versus Dunga – que certamente ainda não terminou –
deixa claro que já existe no país, não só uma ampla consciência da
arrogância e dos privilégios históricos da Globo, como também novas
e eficientes formas de expressar inconformismo diante dessa
situação. E mais importante: novas e eficientes formas de apoiar
aqueles que, como Dunga – correndo o risco de perder o emprego –
não se curvam ao poder de concessionários de um serviço público que
continuam a se comportar como se dele fossem proprietários.
Venício A. de Lima é professor titular de
Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor.