Arte: Maria Dias
Até que ponto um empregador tem o direito de exigir um exame médico sem que isso represente uma invasão da privacidade? Uma trabalhadora com problemas ginecológicos pode ser considerada inapta para exercer um cargo público? Esses questionamentos ganharam destaque nesta semana por conta de reportagem veiculada pelo portal IG, que aponta a obrigatoriedade de exames ginecológicos para ingressar no funcionalismo.
Desde 1993, a colposcopia e o papanicolau são aplicados a todas as categorias paulistas como critério de seleção. E, segundo a assessoria de comunicação da Gestão Pública do governo de São Paulo, caso constatada a presença de carcinoma (câncer) no colo uterino, a candidata será impedida de assumir a função imediatamente.
Mesmo as mulheres que ainda não tiveram relação sexual precisam apresentar declaração de seu médico ginecologista para comprovar a virgindade, conforme comunicado publicado em 12 de junho de 2014 no Diário Oficial de SP.
Além de discriminatória, a medida comete a injustiça de impedir que trabalhadoras plenamente qualificadas exerçam as funções para as quais foram aprovadas.
A secretária de Legislação do Sindicato dos Funcionários e Servidores da Educação (Afuse), Lizete Maria da Costa Marques, é uma prova disso. Ela ingressou em uma escola como agente de organização em 1991 e adquiriu câncer de vesícula ao longo dos 13 anos de profissão, mas isso nunca afetou seu trabalho.
“Estamos falando que o maior Estado do Brasil estabelece exames ginecológicos como critério de seleção. Me sinto constrangida e frágil diante de uma administração pública que obriga a uma exposição desnecessária, tanto para esta função como para outras dentro do ambiente escolar”, afirma.
Segundo Lizete, o edital do governo de São Paulo está sendo analisado pelo departamento jurídico do sindicato, que deve entrar com uma ação judicial.
Persistir no erro
Para o jurista e professor da Faculdade de Direito da USP, Jorge Luiz Souto Maior, a afirmação do governo de que a medida é adotada há mais de duas décadas, sem que jamais houvesse qualquer ação na Justiça, não valida juridicamente o erro.
“É clara a ilicitude no que se refere às exigências desses exames para as mulheres ingressarem no concurso público, assim como para os homens acima dos 40 anos, que também são submetidos a exames urológicos. Primeiro porque são discriminatórios e, segundo, porque não se justificam do ponto de vista da finalidade. Isso é tanto uma discriminação, como uma forma de fragilização”.
Secretária da Saúde do Trabalhador da CUT Nacional, Junéia Martins Batista, considera a exigência uma invasão de privacidade. “Somos contra qualquer teste pré-admissional de saúde. Já ouvi essa proposta para as policiais civis no estado da Bahia e considero invasiva, assim como em São Paulo. É uma agressão ao direito constitucional de privacidade sobre o corpo”, critica.
Discriminar e descriminar
Para a secretária da Mulher Trabalhadora da CUT São Paulo, Sonia Auxiliadora, a medida do governo estadual representa uma visão do governo tucano sobre as mulheres. “Sou professora de educação infantil de Presidente Prudente e, na minha perícia, realizada há 29 anos, eu não tive que passar por esses exames. Além de ferir a dignidade e a privacidade das mulheres, qual é a lógica do governo do PSDB? Não podemos esquecer que o Estado de SP foi o último a assinar o Pacto Nacional ao Enfrentamento à Violência Contra a Mulher”, recorda.
De acordo com a assessoria do governo paulista, a exigência dos exames se baseia no Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado, Lei nº10. 261, de 1968, e em normativas do Departamento de Perícias Médicas (DPME).
O jurista Souto Maior explica que por trás da questão de saúde existe uma subjetividade que pode não revelar as verdadeiras razões para seleção de candidatas. “Nesse caso paulista há um problema de discriminação de gênero explícita”.
Na contramão
A secretária da Mulher Trabalhadora da CUT Nacional, Rosane Silva, lembra que a Constituição Federal diz que as pessoas não podem ser discriminadas por cor ou pelo gênero. “Deveriam existir políticas públicas para superar questões como essas, pois a medida obrigatória vai na contramão da história. Eles podem dizer que é uma forma de proteger as mulheres, mas, na verdade, é uma forma de expor as que passaram pelo concurso público”, disse.
Presidenta do Conselho Nacional de Saúde, Maria do Socorro de Souza, diz ser uma discriminação os critérios adotados pelo governo de São Paulo. “Os princípios para alguém assumir um cargo público deve ser a formação, a experiência profissional, o perfil e as habilidades exigidas para a função, bem como as condições de saúde”, pontua.
Para ela, entretanto, não é clara a intenção com relação à obrigatoriedade do exame preventivo. “O governo poderia incentivar de forma educativa os cuidados com a saúde, com campanhas de prevenção mostrando a preocupação com as servidoras públicas. Isso seria uma postura respeitosa. Como isso não ocorre, se configura uma violação de gênero”.
O jurista Souto Maior reforça que a medida fere princípios fundamentais como a intimidade e a dignidade. “Daqui a pouco farão testes de DNA nas pessoas para saber se elas terão propensão a algum tipo de doença para daqui a não sei quantos anos”, ironiza.
Prevenção no lugar da seleção
A ginecologista e assessora de ações temáticas da Secretaria Municipal de Políticas para as Mulheres de São Paulo, Ana Lúcia Cavalcanti, afirma que se durante tantos anos isso não foi questionado é porque as mulheres não tinham essa reflexão. Com avanços como a criação de uma Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres no governo federal durante o governo Lula, a luta das mulheres ganhou mais visibilidade na sociedade e em espaços de debate como a internet.
Ela referenda a visão da sindicalista Lizete Marques e aponta que, mesmo sob o ponto de vista da saúde, o câncer no colo do útero pode não ser restritivo à atividade profissional. “As trabalhadoras não podem ser consideradas objeto numa lógica capitalista e de produção”.
A médica e pesquisadora da Fundacentro, Maria Maeno, defende que a prioridade deveria ser avaliar as condições de trabalho, diante dos inúmeros casos de adoecimento nas esferas públicas e privadas. Segundo relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), mais de dois milhões de pessoas morrem a cada ano devido a enfermidades relacionadas ao trabalho.
Para ela, fazer exames ginecológicos é uma questão de saúde pública e não de saúde ocupacional. “Os exames médicos frequentemente têm servido para selecionar e discriminar pessoas em processos de admissão no setor privado e público. Ninguém pode ser contra exames ginecológicos, mas por que exigir esses exames na seleção? O caminho deve ser estimular as pessoas para a realização de exames preventivos e de detecção precoce de doenças, consagrados na saúde pública, mas os empregadores devem promover a prevenção de doenças ocupacionais, propiciando aos trabalhadores um ambiente saudável, e portanto, focando a sua atuação para as mudanças das condições no local de trabalho”, conclui.
Pronunciamento federal
Segundo nota divulgada nesta terça-feira (7), pela Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR), “a exigência de exames ginecológicos em seleções e concursos viola o princípio da dignidade da pessoa humana, consagrado no inciso III do artigo 1º da Constituição Federal de 1988. E também fere o artigo 5º da Constituição inciso X, que dispõe sobre o Princípio da Igualdade e o Direito a Intimidade, Vida Privada, Honra e Imagem. Além disso, a lei nº 9.029, de 1995, proíbe a exigência de atestados de gravidez e esterilização, e outras práticas discriminatórias, para efeitos admissionais ou de permanência da relação jurídica de trabalho”.
Fonte: CUT/SP
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